Por Colin Murphy
Quando a chuva vem, o medo também. Para centenas de crianças que vivem perto da cidade de Petrópolis, no sudeste do Brasil, um fenômeno tão normal e natural lembra uma experiência traumática. Em fevereiro de 2022, uma chuva histórica atingiu Petrópolis. As inundações e os deslizamentos de terra destruíram centenas de casas e deixaram milhares de pessoas sem abrigo. Casas mal construídas em encostas instáveis foram varridas pela queda d’água e pela terra. Cento e setenta e seis pessoas morreram. As famílias passaram muitas noites nas ruas ou em abrigos improvisados, tentando processar a realidade de que todo o seu mundo, já tão frágil, havia desaparecido completamente.
Para uma comunidade marcada pela interseção de problemas sociais e vulnerabilidades econômicas, a reconstrução pós desastre foi assustadora, mas a AVSI Brasil estava lá para auxiliar os moradores nesse processo. Com a ajuda do Center for Disaster Philanthropy, um financiador humanitário com sede nos Estados Unidos, a AVSI montou um projeto de reconstrução e fortalecimento da comunidade.
A AVSI entende que a melhor forma de chegar às famílias e a comunidades inteiras é acompanhando as crianças. Assim, a equipe da AVSI procurou centros comunitários em dois bairros de Petrópolis – Alto da Serra e Caixambu, para oferecer programas de apoio educacional e psicossocial às crianças.
A gerente de projetos da AVSI Brasil, Fernanda Augusta, conta que a primeira coisa que ela e sua equipe perceberam foi o trauma das crianças com a experiência. “Quando chove muito, as crianças entram em pânico e se desesperam, características que a gente vê muito nos adultos, enquanto as crianças às vezes ficariam alheias. Quando veio a primeira grande tempestade, essas crianças ficaram presas dentro de uma escola, e algumas delas ficaram separadas de suas famílias por muito tempo”.
Adicionado a essa experiência visceral de trauma compartilhado estão os problemas diários menores, que surgem com a vida em comunidades tão vulneráveis: pobreza, vício, lares desfeitos e pequenos crimes. “Apenas cinco anos atrás, muitas das casas nesta área não tinham banheiros. Isso ainda nos choca”, acrescenta Fernanda. “Temos muitos casos de violência doméstica nessas família. Muitos casos de abuso. Muitos casos de alcoolismo e drogas também”, conclui.
A equipe da AVSI observou muitas questões afetivas entre as crianças dessas comunidades. Eles eram emocional e socialmente fechadas. A alegria e a leveza de ser uma criança normal não existiam. Assim, a AVSI desenvolveu uma programação para ajudá-las a voltarem a ser crianças.
O programa começa com a atenção psicossocial, onde um psicólogo se encontra com as crianças individualmente e em grupos para falar sobre suas experiências de trauma, ajudá-las a aprender mecanismos positivos de enfrentamento e trabalhar para melhorar sua autoestima. Depois, há um componente de reforço educacional. As crianças perderam muito tempo escolar vital após o desastre natural e, quando puderam ir à escola, a qualidade de seu aprendizado nem sempre foi boa. Através deste projeto, as crianças têm um espaço para rever os conceitos que aprenderam na escola e preencher eventuais lacunas de conhecimento que possam ter. As atividades de reforço educacional dentro do projeto incluem escrever e apresentar canções curtas e peças de teatro, escrever um diário e assistir a um filme juntos sobre um determinado tema e, em seguida, discuti-lo.
Por último, mas não menos importante, diz Fernanda, a programação da AVSI enfatiza a importância das brincadeiras. “Apesar de algumas de nossas programações tratarem de temas pesados, não tiramos deles esse prazer de brincar. Independentemente do que está acontecendo em suas vidas, eles precisam brincar, se divertir”, comenta.
Ela viu em primeira mão como as crianças cresceram graças à atenção que receberam. “As crianças são muito carinhosas. Elas estão sempre se abraçando e se cumprimentando e conversando com os professores. Elas não estão mais fechadas. Elas conseguiram entender muito sobre suas experiências traumáticas e como lidar com esse trauma daqui para frente”. Autenticidade e representação têm sido as chaves para o sucesso em uma comunidade que tradicionalmente tem sido deixada à margem da sociedade. “No primeiro dia em que visitei os alunos em sala de aula, estava com o cabelo afro”, disse Fernanda, que é negra. “Apesar de nunca terem me conhecido, as crianças correram e me abraçaram e disseram: “Oh professora, uau! Que lindo!”. Pensei: “O que está acontecendo aqui?” Mas então percebi que essas crianças nunca se sentiram representadas por professores e figuras de autoridade. Então, eu soube desde aquele momento que tinha uma grande responsabilidade em honrar isso”.
Essa conexão autêntica começou na sala de aula com as crianças e se expandiu para suas famílias e toda a comunidade. Em muitos casos, os pais e responsáveis não podem comparecer aos eventos escolares porque precisam trabalhar ou sofrem com o vício. Assim, os assistentes sociais da AVSI Brasil começaram a visitar as famílias em suas casas e acompanhar cada uma delas. Eles viram avanços tremendos nas relações entre pais e filhos e no envolvimento dos pais na educação de seus filhos.
Outro diferencial da abordagem da AVSI é o foco no estabelecimento de redes. “As famílias aqui tendem a ser solitárias e isoladas. Mesmo morando muito perto, eles não se solidarizam”, diz Paola Gaggini, coordenadora do programa da AVSI Brasil no Rio de Janeiro. “Por isso criamos grupos e fazemos acompanhamento não individualmente, mas em grupo. Isso cria sustentabilidade porque as famílias começam a simpatizar umas com as outras e a formar laços. Se eu tenho dificuldade de levar meu filho, mas minha vizinha mora perto e leva a filha dela, por que ela não pode me ajudar?”, explica Gaggini.
Estabelecer um caminho para a sustentabilidade é, muitas vezes, esquecido na pressa de responder imediatamente a desastres naturais. Uma geração de crianças passou por esse desastre e, embora seja vital que recebam a assistência humanitária de que precisam a curto prazo, talvez seja ainda mais vital que essas crianças e a próxima geração não estejam destinadas a reviver os mesmos traumas a longo prazo.
Por fim, Gaggini diz que a visibilidade também é um grande desafio que anda de mãos dadas com a preparação para desastres. “Muitas famílias que encontramos não estavam nas listas públicas. Aos olhos do governo, eles não existiam. Então, posteriormente, acompanhávamos as pessoas aos postos de atendimento público para cadastrá-las. Então essas pessoas começaram a existir.” Caso ocorra outro desastre natural na região, o governo local poderá localizar e atender essas famílias mais rapidamente.
Hoje, as crianças de Petrópolis já não têm tanto medo quando chove. Não é que a ameaça de inundação ou deslizamento de terra tenha desaparecido completamente. As crianças aprenderam a processar seu medo e ansiedade e têm uma comunidade de pessoas que as apoiam. Um pequeno ato de solidariedade e conexão pode ser transformador, e a AVSI continuará caminhando com esta comunidade – não apenas para que possam enfrentar desastres futuros, mas para que possam crescer e prosperar.