O encontro despertou interesse da comunidade em algo de extraordinário na humanização da execução penal no Brasil
“Eu não fiz outra coisa senão cuidar de preso. Eu não fiz outra coisa senão visitar as prisões e tantas vezes ser submetido àquelas revistas humilhantes para ir ao encontro daqueles que muitas vezes não foram abraçados”.
Assim, Valdeci Ferreira, diretor executivo da Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC) definiu sua experiência de 33 anos dedicados à APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados) para o público que lotou o auditório da Cúria Metropolitana Bom Pastor, espaço cedido pela Arquidiocese de São Salvador, na noite da última terça-feira (17).
O evento organizado pela AVSI Brasil teve como objetivo esclarecer o que é e como funciona o método APAC de ressocialização de condenados, abordando o nexo com a misericórdia, tema celebrado pela Igreja Católica por meio do Jubileu da Misericórdia, proclamado pelo Papa Francisco.
O público numeroso acompanhou de modo atento as falas dos componentes da mesa: Valdeci Ferreira (FBAC), D. Murilo Krieger (arcebispo de Salvador e primaz do Brasil e vice presidente da CNBB), Durval Ângelo (deputado estadual por Minas Gerais e membro do conselho Fiscal da FBAC), Anhamona de Brito (superintendente de Direitos Humanos do Estado da Bahia), além de Fabrizio Pellicelli (diretor presidente da AVSI Brasil), que mediou a discussão.
Participaram do encontro amigos e colaboradores da AVSI Brasil, representantes da universidade católica de Salvador, integrantes da pastoral carcerária, religiosos, consagrados, associações de defesa dos direitos humanos, atores da sociedade civil e representantes do governo do estado da Bahia, bem como deputados estaduais e vereadores do Município de Salvador.
A presença de Valdeci Ferreira e do deputado Durval Ângelo em Salvador se inseriu no âmbito de uma missão organizada pelo Governo do Estado, para discutir e divulgar a experiência das APACs.
A APAC baseia-se em uma metodologia que centra a sua diferença na humanização, permitindo transformar o cumprimento da pena em uma circunstância de real ressocialização e reinserção do recuperando na sociedade. Assim, os recuperandos, como são chamados os detentos nas APACs, descontam a pena como indicado na lei de execução penal, porém, com condições claras de recuperação.
“Ninguém é irrecuperável”
Não por acaso, o título escolhido para o evento foi o lema da FBAC. Recordando fatos vivenciados ao longo de três décadas empenhadas ao trabalho na associação, Valdeci Ferreira iniciou seu comentário afirmando que “não existem pessoas irrecuperáveis. O que existe é tratamento inadequado. O que o Estado faz hoje é prender, piorar e devolver para a sociedade pessoas mais violentas, pessoas que saem com mais ódio e que de novo vão se vingar da sociedade”.
Com opinião semelhante sobre o sistema carcerário convencional, D. Murilo Krieger afirmou que “visitando os diversos presídios comuns, percebemos que não vamos educar ninguém, não vamos recuperar ninguém, não vamos ajudar ninguém a descobrir a sua dignidade de pessoa, de filho de Deus, criado à imagem e semelhança de Deus”.
O arcebispo de Salvador e primaz do Brasil reconheceu na APAC um ambiente favorável para recuperar a pessoa por meio da misericórdia, intrínseca ao ser humano. “É próprio da Igreja e, portanto, próprio de cada um de nós, exercer a misericórdia e buscar meios de viver a misericórdia de Deus”, comentou.
Fundamento da APAC
O método APAC é baseado em três pilares (o amor, a disciplina e a confiança) e conta com 12 elementos fundamentais, colhidos no dia a dia das prisões, através da vivência com presidiários, da escuta de suas experiências em reuniões e atendimentos.
“Esses 12 elementos, quando aplicados de modo harmônico, vão produzir resultados efetivos, que hoje fazem com que representantes da ONU afirmem que a experiência mais marcante no mundo atual em matéria prisional é o movimento das APACs no Brasil”, destacou Valdeci.
Essa metodologia, conforme esclareceu o representante da FBAC, “é o resultado da sociedade civil organizada, que toma consciência de um problema grave, danoso, que é o sistema prisional brasileiro, e aponta uma solução”.
Política pública
As APAC são mais eficazes e eficientes do que o sistema comum, que na opinião de especialistas se encontra falido e onde são descartados e descumpridos princípios e direitos constitucionais. O custo do preso para o Estado, em uma APAC, corresponde a 1/3 daquele que acarreta o preso no cárcere comum. Número que evidencia que as APACs conseguem ressocializar a um custo muito inferior.
Em Minas Gerais, o método é uma política pública, com 39 unidades prisionais em funcionamento, que abrigam um total de quase 3.000 recuperandos, além de mais de 50 APACs constituídas aguardando a construção do espaço físico para seu funcionamento, segundo o deputado Durval Ângelo, convidado para esclarecer como se deu esse processo.
Outros nove estados brasileiros também já aderiram ao método APAC e outros 14 contam com as unidades prisionais em diferentes fases, algumas já construídas. A AVSI Brasil está apoiando, por meio de um acordo de cooperação ao desenvolvimento com a União Europeia, a instalação do método APAC em outros estados: Ceará, Maranhão, Rondônia, Espírito Santo e Paraná. Pelo mundo, a metodologia está presente em 23 países.
A respeito da implementação do método no território baiano, Valdeci demonstrou estar esperançoso: “a APAC é uma obra de misericórdia, e eu não tenho dúvida de que em boa hora ela chegará no estado da Bahia”.